Há algum tempo certos pensadores vêm falando de um novo “mal-estar na civilização”, típico de nosso tempo: o abandono da vivência concreta em benefício de variadas formas de interação virtual. Em geral, esse costuma ser um debate árido e profundamente abstrato, mas a brilhante entrevista que o jornalista americano Gay Talese concedeu ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, no último dia 20 de julho, mostrou que a questão está longe de ser um mero debate acadêmico.
Durante a conversa com os entrevistadores escalados pelo programa, Talese, um dos criadores do chamado new journalism, falou sobre as dificuldades pelas quais o jornalismo passa hoje. Segundo ele, boa parte da crise de credibilidade que a imprensa mundial (e americana em especial) vem enfrentando desde os atentados de 11 de setembro de 2001 se deve ao fato de os repórteres terem deixado de fazer aquilo que ele chama de legwork, o bom e velho “gastar sola de sapato”.
Talese tem moral para fazer essa crítica às novas gerações. Ele é um dos principais representantes do movimento que nos anos 60 fundiu jornalismo e literatura, utilizando técnicas narrativas sofisticadas para contar histórias reais por meio de grandes reportagens. Para isso, os jornalistas dessa escola iam para as ruas e mergulhavam profundamente no cotidiano dos personagens que retratavam. Passavam semanas investigando para depois condensar suas experiências em um texto literário de não-ficção.
O fato de um dos pais desse tipo de jornalismo constatar que o gênero está em crise diz muito não só sobre a imprensa atual, mas também sobre o mundo no qual ela está inserida. A verdade é que a constatação de Talese é a ponta de um iceberg muito mais profundo, de proporções históricas gigantescas.
Não são só os jornalistas que não saem mais às ruas para fazer reportagem. Não são só os repórteres que escrevem verdadeiros tratados sobre pessoas que nunca viram pessoalmente na vida. A cada dia, cada um de nós faz isso com cada vez mais frequência.
A crise do new journalism é consequência de uma das mais radicais revoluções técnicas dos últimos 500 anos, a revolução da informática e das telecomunicações. Nas últimas quatro décadas as tecnologias da informação se desenvolveram de tal maneira que surgiu um abismo entre a época de ouro do new journalism e os dias atuais.
Não há dúvida de que hoje temos acesso a uma quantidade de informações incrivelmente maior do que nossos colegas dos anos 50 e 60 tinham. Isso em tese é ótimo, mas esse salto tecnológico produziu um efeito colateral do qual só agora estamos começando a nos dar conta: o divórcio com a realidade que nos cerca.
As máquinas nos permitem entrar em contato, em tempo real, com o outro lado do planeta, mas ao mesmo tempo nos afastam do nosso vizinho. Quando queremos falar com um amigo, por falta de tempo deixamos de marcar um encontro ou até mesmo de ligar, e nos limitamos a mandar um e-mail. O resultado disso é que estamos cada vez mais distantes da realidade, da vivência concreta. Estamos transferindo nossa vida para o mundo virtual e achamos isso lindo.
Por tudo isso, a entrevista de Gay Talese lembra como, em certo sentido, por trás de todo esse progresso que veneramos como um deus moderno, está em curso uma regressão brutal. Estamos simultaneamente avançando e regredindo, dançando como Michael Jackson, dando a impressão de estar caminhando para frente quando na verdade andamos para trás. Sabemos tudo o que está acontecendo no Afeganistão, mas somos incapazes de sair à rua e olhar nos olhos do nosso vizinho.
Estamos nos divorciando da realidade, e as consequências podem ser catastróficas. A crise financeira global é um sinal desse processo: depois de décadas de transações virtuais em que valores inexistentes eram negociados por malabaristas responsáveis por fazer as pessoas acreditarem em um mundo que não passava de um castelo de cartas, a economia decidiu passar a fatura... e de repente todo mundo se lembrou que o mundo real ainda existe.
O crescimento assustador da indústria de antidepressivos não é mais um sinal desse novo mal-estar na civilização? Que trauma maior para uma criança que passou a vida toda protegida da realidade de repente se dar conta, aos 18 anos, de que vai ter que fazer o impossível para conseguir um emprego em um mundo onde o trabalho é cada vez mais dispensável?
Os psicólogos e psiquiatras dizem que a esquizofrenia é o distúrbio que provoca uma cisão com a realidade. Não seria exagero, portanto, dizer que estamos vivendo a Era da Esquizofrenia. E é melhor pensarmos bem até que ponto estamos dispostos a levar adiante esse divórcio com o mundo real...
fonte : blog da historia viva de Bruno Fiuza
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